domingo, 23 de agosto de 2015

O "TREM DEMOLIDOR" EM CABRÁLIA PAULISTA (1976)

A fotografia acima foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 4 de maio de 1976. Mostra a estação de Cabralia Paulista com uma locomotiva elétrica à sua frente (virada sentido São Paulo) " e foi provavelmente tomada no último dia de circulação dos trens ali, no dia 1o de maio, três dias antes.

Há doze anos, uma pessoa a quem não vejo hoje já há muito tempo, João Baptista Lago, escreveu num e-mail dirigido a mim e outras pessoas que gostavam de ferrovias, um texto que era na verdade um comentário a alguma fotografia, tomada trinta anos antes na linha da defunta Companhia Paulista de Estradas de Ferro pelo José Pascon Rocha, um ferromodelista e fotógrafo que vive em Santos.

O comentário dele era finalizado pelo parágrafo que reproduzo imediatamente abaixo e que mostra quão lendário era o trecho do Tronco Oeste da Paulista entre as estações de Bauru e de Garça, trecho este que passava ao sul da Serra das Esmeraldas, na Alta Paulista. Quando se viajava de São Paulo a Panorama, às margens do rio Paraná, por um trem que, quase exatamente no meio da linha entre Bauru e Garça, trocava de locomotiva (elétrica para diesel) ao parar na estação de Cabrália Paulista, onde terminava a fiação aérea.

Eu me lembro dos meus 11 anos de idade, levantando a pálpebra dos olhos, ainda sob os lençóis, na minha cama na cabina do carro-dormitório, e em seguida levantando a persiana de madeira da cabine e depois a janela de vidro, respirando o ar fresquinho do comecinho da manhã, misturado com o aroma metálico-diesélico das G-12s... e pela janela de um trem lento e melancolicamente choroso nas subidas, vendo essa terra alaranjada com seus pés de café, uma Alta Paulista com seus mares de cafezais a perder de vista que, mal desconfiava eu, durante mais de um decênio, iriam substituir os mares da minha Florianópolis na minha vida. Quem diria, o Pascon e suas fotografias, e eu que pensava que ele somente fazia locomotivas, muito bonitas e artesanais, e, HO. Agora entendo o porquê das locomotivas dele serem tão bonitas: foram feitas por alguém que tinha a Alta Paulista encravada na alma!

Como a marcha do tempo e o progresso não respeitam as lendas, no primeiro dia de maio de 1976, a FEPASA, sucessora da Paulista, acabou com esse caminho cheio de curvas e metade eletrificado, substituindo-o por outro, muito mais retilíneo e curto e que passava ao norte da serra citada, economizando tempo e quilometragem para quem viajava para Garça, Marília, Tupã, Adamantina, Dracena e muitas outras cidades, todas fundadas após os anos 1920 no "sertão desconhecido e povoado por índios" do Estado de São Paulo.

Este dia marcou o final dos trens por todo o trecho. Os novos trens, que agora saíam com a locomotiva diesel de Bauru, pois a eletrificação ficou por ali mesmo nesta estação, já passaram a funcionar no dia dois, mas a inauguração do novo trecho seria realizada apenas no dia dez, pelo governador. E ficou marcada para este dia, na linha velha e agora vazia, a passagem do temível "trem demolidor".

O que vem a seguir mostra que a FEPASA não dava a menor importância para o planejamento de como agir após a desativação da ferrovia nas sete estações do caminho.

O "trem demolidor", como era conhecido , era a composição que passava e levava os trilhos com eles,acabando com qualquer chance de o ramal extinto ser aproveitado para outra coisa: um trem que atendesse às cidades do trecho, por exemplo. Estas eram Piratininga, Cabrália Paulista, Duartina e Gália. E ainda havia os bairros onde também existiam estações agora fechadas: Alba, Brasília, Esmeralda e Fernão Dias (hoje município também e chamado somente de Fernão).

Nestas cidades, o clima era de drama. Foram cinquenta anos com a ferrovia. Na verdade, toas essas cidades e vilas foram fundadas por causa dela. Era um nada muito grande, onde até para nomear as novas estações, nos anos 1920, a Companhia Paulista teve de inventar uma norma: seguir o alfabeto, procurando nomes relacionados a algum assunto (embora haja divergências, a história mais aceita cita o nome de fatos do Brasil desde o descobrimento). Não havia referências, era tudo virgem. E apareceram América (depois Alba), Brasilia, Cabralia...

E toda essa gente que morava ali por causa da facilidade das ferrovias, teriam agora dificuldade para sair da região, inclusive com as suas mercadorias. As estradas ainda eram ruins em 1976. A cidade de Cabralia estava isolada. Só havia uma estrada de terra cuja pavimentação completou naquele ano doze anos de promessas. Em compensação, Garça, que ficara com linha e ainda ganhara uma estação nova e maior em um local diferente, aumentara a procura por passagens em 40 por cento, dado o preço mais baixo do trem em relação ao ônibus e à maior facilidade e redução do tempo na viagem para Bauru, agora 40 minutos mais curta.

O que as cidades fariam com os pátios das estações e seus prédios? O plano, na época, era que os municípios criassem uma empresa para usá-los como armazém para centralizar cargas e enviar por via rodoviária para o ponto mais próximo da linha nova para embarque nos trens. Gália queria formar a Companhia Municipal de Armazéns Gerais para isto. Além disso, estava na espera de que a FEPASA providenciasse um veículo para transportar passageiros para uma estação na linha nova. Esse transporte seira implantado de fato?

O prefeito de Duartina ameaçava, dizendo que, se a FEPASA transferisse para o município o espólio da ferrovia no seu território: "as pedras e dormentes seriam vendidos e daria para asfaltar a cidade toda". De fato, já há muitos anos que não há nada da ferrovia lá: apenas sobrava um armazém em 1998, quando estive por ali - e já se vão vinte anos. Em Cabrália, a estação foi demolida e o velho pátio onde manobravam locomotivas elétricas e diesel está abandonado. Sobraram as casas de turma, em nível mais elevado do terreno.

O desespero dos empregados era grande: avisados da desativação na véspera da abertura do novo tra~cado, eram ao todo trinta famílias que seriam transferidas para outras cidades - que não sabiam ainda quais eram - e não teriam tempo para arranjar aluguel tão rápido. Não sabiam, também, se os salários que ganhavam seria suficiente para as outras cidades onde teriam de viver.

Ainda havia 30 mil sacas de café estocadas nas sete estações do trecho. A FEPASA teria de transferi-las. O plano era a FEPASA transferi-las para Jaú ou Bauru, mas os agricultores não aceitaram, pois temiam os roubos. A FEPASA então se comprometeu a deixar um vigia por estação, o que também era inseguro.

O bairro de Brasilia, que pertence a Piratininga, não sabia como mandar seus dezessete estudantes para a escola: eles iam de trem e não havia serviço regular de ônibus. A escola mais distante ficava a doze quilômetros, impossível ir a pé. Os carros que transportavam dinheiro para a agência da Caixa Econômica em Cabralia temiam usar as estradas: quando chovia, eles atolavam e temiam assaltos, isolados no meio do barro.

Hoje, quarenta anos depois, tudo se normalizou nessas cidades e vilas. Mas "normalizar" não significa algo realmente bom. O asfalto e os ônibus chegaram, mas as cidades todas estagnaram. O sul da Serra da Esmeralda jamais foi o mesmo.

Um comentário:

  1. A locomotiva elétrica da foto é uma GE 1+C-C+1 conhecida como Quadradona,as primeiras chegaram em 1928 na Paulista e as últimas foram retiradas em serviço pela Fepasa em 1983,e todas foram cortadas em 1991,a Fepasa além de cortar ramais e trens de passageiros também tentou apagar a memória ferroviária,nenhuma Quadradona "sobreviveu".

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